O Projeto de Lei 1179, aprovado em abril pelo Senado e de autoria do senador Antônio Anastasia (PSD-MG), institui normas de caráter emergencial e transitório para a regulação das relações jurídicas do Direito Privado. A lei institui a data de 20 de março de 2020 como marco inicial dos eventos derivados da crise do COVID-19 e institui, com relação à locação de imóveis urbanos, conforme o artigo 9, a não possibilidade de concessão de liminar para desocupação urbana de imóveis em ações de despejo (conforme o parágrafo 1º, isso é válido somente para ações ajuizadas após a data de 20 de março). Além disso, de acordo com o artigo 10, os locatários que sofreram alteração econômico-financeira, ou seja, diminuição da remuneração, demissão ou redução da carga horária de trabalho, poderão suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos aluguéis com vencimento de 20 de março à 30 de outubro de 2020. Este último artigo, porém, acabou suprimido no texto final. Ainda assim, o locatário pode alegar força maior devido à pandemia de Coronavírus para suspender ou reduzir o valor da mensalidade, conforme o artigo 393 do Código Civil: “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. O artigo 10, porém, era importante, visto que se tratava de mais um instrumento para amparar a luta dos locadores pela diminuição das mensalidades neste período.
Por fim, ainda com relação à locação de imóveis urbanos, na hipótese de suspensão do pagamento, os aluguéis vencidos deverão ser pagos parceladamente a partir de 30 de outubro “somando-se à prestação dos alugueres vincendos o percentual mensal de 20% dos alugueres vencidos”. Os locatários deverão comunicar o exercício da suspensão possível conforme à lei aos locadores.
Porém, no dia 11 de junho, o presidente da República, Jair Bolsonaro, anunciou via Twitter o veto de diversos artigos da PL 1179, dentre eles o artigo 9, que impedia despejos durante a pandemia para ações ajuizadas após o dia 20 de março. A suspensão dos despejos era uma medida importantíssima neste momento. O lema “fique em casa” é importante, mas para que as pessoas fiquem em casa é necessário que elas tenham condições para isso. Se na normalidade já lutamos contra a violência e a injustiça dos despejos, num momento de vulnerabilidade econômica como este isso é ainda mais necessário. Tal veto é mais uma amostra do descaso do atual governo com a vida.
A PL 1179, porém, não é mil maravilhas. Ainda que locatários que tenham sofrido demissão, diminuição do aluguel ou redução da carga horária de trabalho possam suspender, total ou parcialmente, os aluguéis com vencimento nesse período, há muitos que, por mais que não tenham sofrido tais, tenham dificuldade de pagar. Isso porque os gastos com energia, água, alimentos (principalmente para aquelas famílias cujos filhos se alimentavam sobretudo nas escolas) e internet também aumentaram consideravelmente. Daí a importância de se realizar uma greve de aluguéis. Além disso, o projeto não declara a moratória dos aluguéis, como tem sido solicitado pelo resto do mundo, mas determina que o pagamento dos aluguéis do período de março a outubro deste ano poderá ser feito em parcelas em até 30 de junho de 2022 (como feito na Alemanha).
Outros problemas da PL 1179/2020 são o fato de o projeto não seguir o decreto legislativo 6/20, que reconheceu “estado de calamidade pública até 31 de dezembro de 2020”, limitando seus efeitos até a data de 31 de outubro de 2020; ter retirado o artigo que suspendia os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, do texto final (o que se deu durante a passagem peloSenado) e ter incluído a prorrogação da Lei De Proteção de Dados, do governo Temer, com o intuito de proteger as empresas, o que na prática já tinha sido feito via uma
Medida Provisória de Bolsonaro.
Alguns pontos positivos do projeto são o artigo que prevê que a prisão por dívida alimentícia deverá ser cumprida exclusivamente na modalidade domiciliar e o que previa que empresas de transporte por aplicativo teriam de reduzir 15% do lucro sobre o valor da corrida durante o período da pandemia e repassar esse valor para o motorista. O primeiro garante que o sistema prisional, já superlotado, não seja ainda mais pressionado neste momento, colocando os presos em um risco ainda maior de contaminação. Mas esta medida ainda não é suficiente. É importante que se analise se
os presos que cometeram crimes de baixo potencial ofensivo possam cumprir sua pena em casa, bem como parte dos presos provisórios e aqueles com mais de 60 anos, que compõem o grupo de risco etário. Por fim, é importante que sejam garantidas condições sanitárias e de higiene básicas nos presídios (não só durante a pandemia, mas sempre).
Já o ponto sobre empresas de transporte por aplicativo, porém, foi vetado por Bolsonaro, o que é de se esperar, visto que o atual governo sempre trabalha em prol dos empresários e em detrimento da classe trabalhadora. Era uma medida importante para esses motoristas, que estão na linha de frente diariamente, incorrendo em risco de contágio para sobreviverem com um salário baixíssimo. A situação precarizada desse setor evidencia-se nas greves que estes trabalhadores têm realizado em diversas cidades brasileiras, em especial em São Paulo.
Sendo assim, reiteramos a importância de se garantir as condições básicas para que as pessoas cumpram o isolamento, sem risco de despejo e com moradia, alimentação, saneamento e uma renda básica universal adequados. Também é importante que se garanta condições para que as pessoas sob pena de privação de liberdade possam passar por este momento com a maior segurança possível. Como afirmou a escritora Naomi Klein em uma recente live realizada com a filósofa Angela Davis (“Construindo movimentos: uma conversa em tempos de pandemia”), “a crise escancara o sentido do que é possível”: “quando o capitalismo produz suas próprias crises [como a atual] e as injustiças do sistema” isso cria uma grande possibilidade para alternativas radicais. Como ela reitera, “’nosso trabalho é”, assim, o de “abrir a porta da transformação radical o máximo e pelo maior tempo possível”. É hora de construirmos, portanto, uma greve de aluguéis. É hora de gritarmos: não vamos pagar!